‘Uma prova de amor’: drama reforça dever em velar pela dignidade das crianças e dos adolescentes

*Por Danielle Corrêa, advogada especializada em Direito de Família

Se você ainda não assistiu esse drama de 2011 que está disponível na Netflix, se prepare, pois com certeza ele ainda fará você gastar muitos lencinhos. Na trama, acompanhamos logo de início, que Sara, interpretada pela famosa atriz Cameron Diaz, recebe o diagnóstico de leucemia para sua filha Kate ainda na infância.

Como bem se sabe, as chances de se encontrar um doador de medula óssea compatível para o paciente são raras e na ficção vivida pela família Fitzgerald não se fez diferente. Com isso, a mãe desesperada e por indicação médica, convence o marido a conceber outra filha em proveta, geneticamente criada para salvar a própria irmã. Assim nasce Anna para ser a fonte de vida à Kate, sendo que desde pequena frequenta hospitais para fazer exames de sangue, procedimentos, tomar injeções, tudo em prol da melhora da irmã.

A premissa maior do filme se baseia na força e na coragem de Anna, que no auge dos seus 11 anos de idade, percebe que foi feita exclusivamente para o benefício da irmã e decide buscar sua emancipação médica, para deixar de ser submetida aos procedimentos invasivos que realiza contra sua vontade, forçada pela mãe. A menina deixa claro que ama a irmã e faria de tudo para salvá-la, mas deseja ter a opção de escolher, de ter o controle sobre o próprio corpo e não permitir que seus pais façam o que bem entenderem com ela.

A criança então contrata um advogado para propor uma ação contra os próprios pais, acusando-os de violar a sua vontade, já que recentemente a irmã teria apresentado insuficiência renal e a solução dada seria a doação - sem o seu consentimento - de um rim seu para a primogênita, o que seria o ápice dos procedimentos até então realizados.

A família chega ao Tribunal para resolver essa questão. Os argumentos de Anna para não querer realizar a doação giram em torno dos prejuízos já sofridos, e da impossibilidade de ter uma vida normal após o procedimento, já que não seria capaz de praticar alguns esportes e enfrentaria dificuldades para ser mãe no futuro, por exemplo. Mais para frente, no decorrer do drama, é possível acompanhar que a busca da Anna pela Justiça foi motivada pela própria irmã Kate.

A mãe das meninas, Sara, estava tão envolvida e perturbada emocionalmente pelo caos da doença da filha, que passou perseguir a todo custo a sua cura, desprezando o bem-estar e a vontade dos demais membros da família, inclusive da própria Kate, que não desejava mais prosseguir com o tratamento e queria apenas morrer em paz. Ir ao Judiciário foi o meio pelo qual as irmãs encontraram para serem ouvidas pela mãe.

O drama por si levanta uma temática extremamente complicada e complexa, e faz a gente refletir sobre algumas questões: O direito de Anna em ser dona de seu próprio corpo é superior à vida da irmã? Anna poderia no Brasil contrariar a vontade dos pais? Quem dá a última palavra, os pais ou o filho menor de idade? E os pais podem submeter um filha a procedimentos médicos contrariando sua vontade?

É claro que as crianças e os adolescentes estão sujeitos ao poder familiar, que é a responsabilidade exercida pelos pais, aos quais compete dirigir a criação e a educação dos filhos menores. No entanto, no caso da ficção, Anna também está sobre a proteção do fundamento maior da nossa Constituição Federal, constante no artigo 1º e 5º, no que diz respeito a preservação da sua dignidade, da sua saúde e da sua liberdade, não podendo ser forçada a dispor sobre o próprio corpo contra a sua vontade.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), inclusive, fortalece o direito da Anna em seu artigo 18, frisando o dever que todos temos em velar pela dignidade das crianças e dos adolescentes, colocando-os sempre a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. O Código Civil, em seu artigo 13, também não deixa de fornecer a sua proteção para este caso, concedendo àqueles que estão em pleno gozo de suas capacidades mentais e que apresentam condições concretas e autênticas, o poder de tomar por si as decisões que dizem respeito a dispor e conservar o próprio corpo.

Em suma, o  menor tem sim direito à manifestação de vontade quando se trata de si, de sua saúde e de sua dignidade, e esses direitos devem ser preservados e respeitados. E, nesse caso, a Anna, apesar da pouca idade, pode escolher o que fazer com seu corpo. Além disso, perante a legislação brasileira, a mesma estaria amplamente protegida e não teria talvez passado por esta situação, que segundo a luz da lei é desumana.

Por fim, a personagem também seria juridicamente impedida de ser doadora do rim, se o caso tivesse ocorrido aqui no Brasil, mesmo que esta fosse sua vontade, pois segundo a Lei nº 9.434/97, Lei de Transplantes, a doação além de ser um ato voluntário, gratuito e altruístico, só será permitida, como regra, aos maiores de 18 anos. Anna por ser menor, e, portanto, incapaz, não teria condições de ser doadora do rim para sua irmã Kate.

Assim, legalmente, nós podemos chegar a uma conclusão inevitável, Anna tinha sim o direito de recusar-se a submeter a qualquer procedimento médico, cirúrgico ou não, doloroso ou não, de risco ou não, sendo absolutamente injurídico censurá-la, reprova-la, incriminá-la ou condená-la por essa atitude.

Sobre Danielle Corrêa
Danielle Corrêa é advogada desde 2007, com pós-graduação em Direito de Família e Sucessões. Membro da OAB-SP e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

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